Publicado originalmente no site Brasil de
Fato
POR LEONARDO FERNANDES, LU SUDRÉ E RUTE PINA
Maior mineradora do Brasil e a terceira companhia na indústria global
de mineração de metais, a Vale S.A carrega vários crimes ambientais e tragédias
humanas em seu histórico. A empresa é responsável pelo rompimento da barragem
Mina do Feijão, em Brumadinho (MG) na última sexta-feira (25), que, até o
momento, matou 65 pessoas. Há 270 desaparecidos e 192 resgatados.
O rompimento da barragem ocorre após pouco mais de três anos do crime
ambiental em Mariana, também em Minas Gerais. O desastre, ocorrido em novembro
de 2015, liberou cerca de 62 milhões de metros cúbicos de rejeitos de mineração
na região e deixou 19 mortos após o rompimento da barragem de Fundão, da
mineradora Samarco, da qual a Vale é uma das donas, em parceria com a BHP
Billiton.
Para a reparação dos danos às pessoas atingidas pelo rompimento em
Brumadinho, a Justiça de Minas bloqueou, no total, R$11 bilhões do caixa da
mineradora. O Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais
Renováveis (Ibama) multou a empresa em R$ 250 milhões.
As penalidades, no entanto, representam muito pouco em comparação com
os lucros enormes da empresa. Após uma política de reestruturação societária em
junho de 2017, com adoção de novas políticas de mercado e de dividendos, as
ações da Vale se valorizaram em 83%.
Em 2018, a Vale atingiu o maior valor de mercado dos últimos sete anos,
ao atingir o valor aproximado de R$ 300 bilhões, ultrapassando o Itaú e a
Petrobras. Em outubro do ano passado, a mineradora anunciou que no terceiro
trimestre obteve um lucro líquido de R$ 5,75 bilhões, com o recorde de produção
de 104,9 milhões de toneladas de minério de ferro.
Após o crime ambiental em Brumadinho, no entanto, as ações da Vale
tiveram queda de 24% — a mineradora perdeu R$ 72 bilhões em valor de mercado.
Criada para a exploração das minas de ferro na região de Itabira, no
estado de Minas Gerais em 1942, no governo Getúlio Vargas, atualmente a empresa
privada, de capital aberto, está presente em cerca de 30 países ao redor do
mundo, e em 13 estados brasileiros.
Privatização
A privatização da antiga Companhia Vale do Rio Doce, no dia 6 de maio
de 1997, durante o governo do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB),
provocou a demissão de milhares de trabalhadores da companhia, até
então uma das mais lucrativas estatais brasileiras.
A venda do controle acionário da empresa para o Consórcio Brasil,
liderado pela Companhia Siderúrgica Nacional, de Benjamin Steinbruch, foi
fechada em 3,3 bilhões de dólares, o que representava 27% do capital total da
empresa. O recurso utilizado para a compra foi disponibilizado aos compradores
pelo BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) a juros
subsidiados.
À época, o governo FHC convidou dois bancos internacionais para avaliar
a companhia que seria leiloada. Um dos critérios determinados pelo governo foi
de que a avaliação deveria se restringir apenas ao fluxo de caixa existente
naquele momento, não levando em conta as reservas de minério de ferro que,
segundo especialistas, eram suficientes para abastecer o mercado por mais de
400 anos.
A empresa foi criada em 1942 com recursos do Tesouro Nacional. Durante
55 anos, foi uma empresa mista e o seu controle acionário pertencia ao governo.
O sociólogo Tadzio Coelho, professor da Universidade do Maranhão
(UFMA), pesquisou em seu doutorado a relação entre mineração e desenvolvimento
em municípios onde a Vale opera. Ele avalia que uma das principais mudanças
entre a gestão pública e privada da empresa é a imposição de um modelo de
mineração mais predatório e antidemocrático.
Ele conta que após 1997 as escalas de produção e extração da mineração
da empresa aumentaram com o maior emprego de aparelhagem tecnológica nos
métodos de exploração e extração minerais — que também aumentou o risco
dos projetos. “A escala da geração de rejeitos também é ampliada. E se há uma
ampliação da escala de produção, como subproduto da produção mineral tem o
rejeito. E daí existe uma maior necessidade da expansão e loteamento das
barragens de rejeito”, explica.
Outra mudança que veio com a privatização foi a diminuição da
participação dos trabalhadores e das comunidades nos caminhos da empresa,
segundo o pesquisador. “A Vale, na medida em que foi privatizada, implementou a
lógica rentista e financeira. Ela começou a ser pautada pelos interesses de
seus acionistas e do mercado financeiro”, pontua. “E aí há uma diferença de
agentes que são centrais nesse processos decisórios.”
Depois do leilão de privatização da companhia, e com incentivo decisivo
de José Serra, ministro do planejamento à época, a Vale passou a ser comandada
pelo banco Bradesco, integrante do consórcio Valepar, detentor de 32 por cento
das ações, enquanto os investidores estrangeiros passaram a somar 26,7% das
ações totais da empresa.
Mesmo ponderando que falhas e lobbies de empresas privadas também estão
presentes em empresas públicas, Coelho defende o processo de reestatização da
Vale como um passo para que a empresa seja guiada pelo interesse público.
“A empresa estatal também é suscetível a este tipo de crime ambiental.
No entanto, a maior tendência é isso acontecer com uma empresa privada, porque
os trabalhadores e o interesse público, em uma empresa estatal, tem maior
preponderância e espaço para ação.
Mas isso deveria ser acompanhado com outras medidas para ampliar o
controle sob a atividade”, aponta o pesquisador.
Cerca de 100 processos que contestam a legalidade da
privatização da Vale foram abertos na Justiça.
“Cuidado com o planeta”: os impactos sociais e ambientais da Vale
Mesmo antes das catástrofes socioambientais em Mariana e em Brumadinho,
as contaminações da atividade mineradora já eram objeto de denúncia.
Publicado em 2014, o livro Recursos Minerais e Comunidade:
impactos humanos, socioambientais e econômicos, de organização do Centro
de Tecnologia Mineral (Cetem), catalogou 1,5 mil documentos e relatou o estudo
de caso de 105 territórios, espalhados em 22 estados brasileiros, que sofreram
impactos da mineração. Aumento da dispersão de metais pesados, mudança na
paisagem do solo, contaminação dos corpos hídricos, danos à flora e fauna,
desmatamentos e erosão, foram constatados como os principais problemas causados
ao meio ambiente.
Embora na descrição dos valores da empresa a Vale afirme ter como
missão “cuidar do nosso planeta” e “agir de forma correta”, a atividade
da empresa é responsável por parte dessas denúncias.
Em janeiro de 2012, por exemplo, a mineradora foi eleita como
a pior empresa do mundo, no que refere-se a direitos humanos e meio
ambiente, pelo Prêmio Public Eye, premiação realizada desde o ano 2000
pelas ONGs Greenpeace e Declaração de Berna. O motivo: uma “história de 70 anos
manchada por repetidas violações dos direitos humanos, condições desumanas de
trabalho, pilhagem do patrimônio público e pela exploração cruel da natureza”,
lia-se na indicação da empresa.
Com cerca de 25 mil votos, a mineradora venceu a Tepco, maior empresa
de energia do Japão, responsável pela usinas nucleares
de Fukushima no Japão.
A Articulação Internacional dos Atingidos pela Vale, grupo de
sindicalistas, ambientalistas e acadêmicos de oito países, produziram
o Relatório de Insustentabilidade, que reúne as denúncias e violações
cometidas pela corporação até 2015.
Em Minas Gerais, a mineradora tenta implementar o Projeto Apolo
na Serra do Gandarela, que pode afetar uma reserva de 5 bilhões de metros
cúbicos de água na região.
Em 2011, a Vale também comprou parte do Consórcio Norte Energia,
responsável pela Hidrelétrica de Belo Monte. O projeto extensamente criticado
pelos impactos socioambientais irreversíveis e pelo descumprimento de
uma série de condicionantes para a implementação do projeto.
O impacto da empresa é global: em Piura, no Peru, onde a empresa tem
uma mina para exploração de fosfato para a produção de fertilizantes para o
agronegócio, o transporte da substância causou a dispersão de material
particulado no ar e na água, afetando milhares de moradores e
pescadores da região. Representantes da Frente de Defesa da Comunidade de San
Martin de Sechura denunciaram que a Vale iniciou a exploração de fosfato sem
consulta prévia, o que descumpre o Convênio 169 da OIT. A dispersão do
material impacta na saúde de pessoas, desequilíbrio ambiental e no trabalho dos
pescadores.
Já em Moçambique, na província de Tete, mais de 1,3 mil famílias foram
afetadas pela poluição atmosférica decorrente da exploração de carvão. Com
dificuldades no acesso à água e com terras impróprias para a agricultura, elas
não foram indenizadas pela empresa até o momento. O Instituto de Estudos
Sociais e Econômicos Moçambicano (Iese) constatou a presença de poluentes
como dióxido de enxofre, óxidos de nitrogênio e monóxido de carbono na região.
Em Nova Caledônia, um arquipélago que fica na Oceania, por
exemplo, foi constatado o vazamento de efluentes ácidos em um rio
próximo à unidade da empresa, causando a morte de cerca de mil peixes.
“Valorizar quem faz a nossa empresa”
Este seria o segundo dos valores da Vale. O Relatório de
Insustentabilidade de 2015 também apontou que, com a privatização, aumentaram
casos de assédio moral e subnotificação do número de acidentes de trabalhos e
trabalhadores acidentados na empresa.
Em 2015, um trabalhador de 43 anos foi vítima de um acidente
fatal da mina da Fábrica Nova em Mariana (MG), por causa do aumento da
carga de trabalho.
No Canadá, investigações incriminam a Vale pela morte de dois
trabalhadores na Mina de Níquel Stobie em Sudbury, em 2013.
Em 2013, a Agência Pública revelou que a Vale espiona
funcionários, movimentos populares e veículos de comunicação. Na época, o
ex-gerente de segurança da mineradora André Luis Costa de Almeida apresentou ao
Ministério Público Federal e-mails, planilhas, fotos que comprovam a atuação da
empresa para defender seus interesses.
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